As razões das turbulentas relações
entre a retórica e a filosofia
Retórica: “Arte de utilização da
linguagem para persuadir ou influenciar os outros. Embora a retórica se
encontre aparentemente em oposição ao ideal filosófico da procura exacta da
verdade, a conciliação dos dois surgiu por vezes como algo desejável (...).”
[Simon BLACKBURN — Dicionário
de filosofia, Lx., Gradiva, 1997, p. 386].
De
uma forma mais comum, podemos entender a retórica em pelo menos um destes
sentidos:
a) Capacidade
de compor um discurso, oral ou escrito (organização do texto).
b) Arte
de bem falar (apresentação do texto).
c) Discurso
típico de um determinado contexto ou área de pensamento (ex.: “a valorização da
família e da pátria ou a condenação do socialismo e da democracia são típicas
da retórica do estado Novo…”)
d)
Discurso persuasivo
Durante
muito tempo, a retórica foi considerada uma arte pouco honesta, por estar
associada e esta última acepção e por ser frequente a sua utilização para fins
pouco honestos — por políticos demagogos, por vendedores sem escrúpulos… Por
isso, acabou por ser uma arte marginal, cujos estudos foram sempre considerados
como secundários.
Porém, durante o
século XX, o estudo da retórica foi recuperado por académicos que estudavam a
comunicação (por exemplo, Roman Jakobson, Shannon & Weaver, Dell Hymes, C.
Perelman), quer como área da linguística, quer como área de interesse dos
estudos de psicologia, sociologia, antropologia, gestão ou publicidade:
conhecer e dominar as variáveis da comunicação é ter maior controlo sobre a
eficiência e a eficácia dos processos comunicativos e dos processos humanos
(relacionais=psicossociais) que lhe estão associados.
Sofistas: ninguém tem nem
pode alcançar o conhecimento absoluto; o que interessa é persuadir
A arte da retórica começou por ser
estudada como uma técnica pelos sofistas. Estes eram professores
itinerantes que cobravam por ensinar aos seus clientes a arte de bem falar,
fosse para ganhar causas e eleições, fosse para brilhar perante os outros.
Ganhar o favor do público era o principal objectivo, e houve quem defendesse o
uso de técnicas trapaceiras para o conseguir. Alguns desses sofistas
desenvolveram teorias sobre a verdade e conhecimento que legitimavam o seu
trabalho. Para começar, assumiam-se como cépticos: por exemplo, o sofista Protágoras
defendia que ninguém pode deter o conhecimento absoluto e que, mesmo que tenha
a verdade na mão, não tem maneira de provar que essa e apenas essa é a verdade.
“No que respeita aos
deuses, não tenho meios de saber se existem ou não, nem de que forma são, pois
existem muitos obstáculos para chegar a esse tema, incluindo a obscuridade do
tema e a brevidade da vida humana”
“O homem é a medida de
todas as coisas”
(Protágoras,
citado por W.K.C. GUTHRIE in Os filósofos
gregos de Tales a Aristóteles, Lx, Ed Presença1987, p. 57)
Se
chegámos à verdade através dos sentidos, não podemos tirar conclusões
universais e absolutas; se partimos de teses universais, não conseguimos
encontrar factos suficientes para as comprovar. Assim, se não se pode saber ao
certo o que é verdadeiro, ninguém pode dizer que possui conhecimento. Logo, o
importante é ter o discurso (ou teoria, ou opinião) mais persuasivo.
Platão: a procura da verdade
é uma obrigação moral
Estas
posições acerca da verdade e do conhecimento valeram aos sofistas a
desaprovação de vários filósofos, começando por Platão, que recusou a ideia de que é indiferente o que defendemos,
desde que convençamos o público:
“Platão trata-os em geral como
charlatães que falavam unicamente para alcançar a vitória. Na verdade, a
atitude geral dos sofistas não parece ter sido muito diferente da de Sócrates
[, que Platão idolatrava]”
[S. BLACKBURN — Dicionário
de filosofia, Lx., Gradiva, 1997, p.413].
Platão
defendia que a virtude é conhecimento e que o conhecimento é virtude: conhecer
o bem obriga-nos a escolher praticá-lo. Quem pratica o bem de uma forma
constante e segura é alguém que o conhece. Se não pudermos saber o que é o bem,
ou seja, se não pudermos ter conhecimentos seguros ao nível da moral, da
política, da forma como devemos viver as nossas vidas ou da excelência dos
seres humanos (excelência = aretê: a
forma de ser perfeita), então é impossível atingir a paz social, uma sociedade
harmoniosa e uma mente equilibrada e segura de si. Qualquer um se sentirá
legitimado para fazer o que entender. Ora, Platão defendia que essa é uma posição
é inaceitável. Por isso, seria necessário supormos a existência de verdades
absolutas e empenharmos as nossas vidas a procurá-las.
Aristóteles: “A retórica é útil, porque sem ela a verdade
pode ser derrotada num debate”
Aristóteles,
que parecia ser um sujeito cheio de bom-senso, ponderou os argumentos de Platão
e os dos sofistas. Platão, seu mestre, tinha razão quanto à necessidade de
encontrar algo em que se pudessem ancorar a ética e as leis. Todavia, a sua
crítica ao trabalho dos sofistas era cega, ao ponto de não se aperceber de duas
coisas fundamentais:
a) que
ele próprio, Platão, utilizava muitas das técnicas dos sofistas (o seu amigo
Sócrates chega a ser retratado como um sofista na comédia As nuvens de Aristófanes);
b) que as técnicas e
os estudos desenvolvidos pelos sofistas eram preciosos para qualquer atividade
humana que envolvesse comunicação e transmissão de ideias.
Estes
estudos procuravam identificar e controlar os factores dos quais depende o
sucesso da comunicação em geral, quer se trate de falar para uma assembleia,
quer se trate de escrever um tratado científico. Apesar de haver pessoas que
utilizam a retórica para fins desonestos, esta arte deveria ser cultivada.
Mantendo-se
dentro da sua formação filosófica, Aristóteles elaborou o seu próprio tratado
sobre retórica (para além de ter elaborado outros sobre lógica, que o
completavam). Nele identifica dois provas ou meios de persuasão:
1)
A forma
lógica — é um meio não técnico ou artístico, no sentido em que não se
socorre da arte do orador para levar o público a uma determinada conclusão. Em
vez disso, socorre-se de raciocínios bem formados e de provas materiais,
testemunhos, documentos ou acordos escritos (aquilo a que, de uma forma geral,
chamamos de argumentos lógicos e de argumentos baseados em factos ou em
princípios morais consagrados). (36)
2)
A emoção
e o caráter — é um meio que depende da perícia do orador para arrastar
o público com o seu carisma, ou seja, para o cativar emocionalmente.
A
arte retórica, entendida como arte de compor um discurso destinado a um
determinado público, incide sobre os meios artísticos da persuasão. Os meios
artísticos de persuasão são três, ethos (derivados do caráter do orador), logos (derivados da
emoção despertada pelo orador nos ouvintes) e pathos (derivados de
argumentos verdadeiros ou prováveis), e correspondem a três grandes fatores ou
grupos de fatores dos quais depende o sucesso do discurso (41)
§ Ethos
(corresponde ao emissor de Roman jakobson e à função expressiva da linguagem).
É um fator dependente do orador.
O
orador, cujo carisma se traduz na influencia que consegue ter sobre o público. O
público procura fundamentalmente duas coisas da parte do orador: competência e
idoneidade. Sem outros meios para o avalir, sobretudo nas primeiras impressões,
baseia-se em dados exteriores: autoconfiança, segurança, autodomínio, boa
apresentação. Assim, o carisma depende do à-vontade, da escolha dos gestos
certos, da tranquilidade, de gestos e palavras seguros, da fluência, do bom
aspeto exterior e do domínio dos assuntos.
Por
vezes, o orador não é o autor do texto: um ator ou orador profissional poderá
ser mais competente na captação do público.
Para ajudar a tudo
isto, o orador pode treinar alguma técnicas básicas: colocar a voz, fazer
entoações, estudar a cadência do discurso e a musicalidade das palavras, ter
uma dicção e uma postura corporal correctas, etc. Estes são aspectos que podem
ser manipulados ou aperfeiçoados, ou seja, que podem ser controlados pelo
orador. A linguagem corporal permite acentuar ou contextualizar as informações
explícitas na mensagem; permite também criar um subtexto que a acompanha — e
que pode ser, simplesmente, “podem
confiar em mim”.
§ Logos (corresponde
à mensagem de R. Jakobson e à função poética da linguagem). Equivale ao texto
da mensagem. Equivale ao texto da
mensagem. Hoje podemos dizer que também inclui parte do subtexto (a outra parte
poderá pertencer ao orador).
O
texto (as palavras ditas ou
escritas): Aristóteles chama a atenção para a veracidade vou plausibilidade do
texto: os factos e os princípios estabelecidos têm uma força de prova muito
grande e que deve ser valorizada se o objetivo do discurso for estabelecer a
verdade. Deve-se ter também atenção à escolha do vocabulário, de imagens,
exemplos e metáforas, à sequenciação das ideias, à escolha dos temas, etc.
O
orador pode controlar este grupo de factores; por exemplo, escolhendo as palavras
certas para o público certo, evitando palavras que provocam reações de
desagrado ou mal-entendidos, etc. Para além de ser necessário dizer a verdade
ou ser plausível, codificar uma mensagem é um passo de extrema importância,
sendo necessário ter em conta: 1) a intenção do autor; 2) o efeito a ser
criado; 3) o público a que se destina.
Também é necessário
perceber que um texto pode ter um subtexto, o qual pode ser mais poderoso que
aquele. Prevê-lo permite evitar surpresas desagradáveis ou manipular o público
com mensagens que podem ser subliminares. Os autores de guiões de televisão ou
de romances policiais são mestres em deixar pistas que passam despercebidas mas
que nos sugerem acontecimentos na história imediatamente antes de os
percebermos: sem que o soubéssemos, fomos induzidos a tirar uma conclusão que
imaginamos que se deveu apenas à nossa perspicácia. Pense-se no valor que isto
tem para a publicidade!...
§ Pathos
(corresponde ao recetor de Jakobson e à função emotiva da linguagem). É um
fator dependente dos dois anteriores, como seus condicionantes, mas sobretudo
do público.
A
receptividade do público é o
factor-chave, porque é em função dela que se fazem escolhas para os outros dois
grupos de factores: escolhemos o vocabulário, os temas, os exemplos, os gestos,
as piadas, etc. É o público que decide se temos sucesso ou não. Por isso, é
importante tentar conhecê-lo antes de começar a comunicação.
Conhecer o público
significa conhecer a) as suas motivações; b) o seu estado de espírito; c) a
linguagem que o público compreende; d) os seus preconceitos e as suas
expetativas; e) as normas pelas quais se rege por exemplo, não se contrata uma
oradora feminina para discursar perante uma plateia machista); etc.
Não importa ter um
discurso muito bom e lógico destinado a uma plateia de indivíduos agressivos,
preconceituosos e rudes. Um discurso boçal pode muito bem ser o indicado, por
muito que isso nos custe a admitir.
Aristóteles
estava atento a este facto e às observações de Platão quando procurou fazer uma
distinção:os sofistas procuram estimular emoções para desviar o público de uma
deliberação racional, enquanto que os filósofos controla as emoções através do
raciocínio que desenvolve com os seus ouvintes — a prioridade é deixar que o
conhecimento racional controle a vida.
Aos
fatores identificados por Aristóteles, acrescentamos outros que foram sendo
identificados pelos investigadores contemporâneos:
§ Objectivos:
Não devemos esquecer que um discurso tem um objectivo, o qual pode delimitar as
opções do orador. Esse objectivo pode impôr condições que são indiferentes às
características do público a partir de determinados limites. As aulas de
disciplinas avaliadas através de exames nacionais ou internacionais são um
exemplo disso. O mesmo sucede na comunicação dentro de uma força militar, de
muitas empresas ou de outras organizações em que o público seja obrigado a
apresentar um produto e a respeitar regras. Geralmente, a existência de
objectivos institucionais está associado à formação de normas.
A escolha do estilo
do texto e do seu conteúdo pode refletir os objetivos do orador: a composição
de um texto publicitário e a de um texto científico serão, expectavelmente,
diferentes.
§ Contexto/situação: é
o conjunto dos diferentes factores ambientais e das pessoas envolvidas. As
mesmas pessoas podem comunicar de forma diferente conforme mudem o local, os
objectivos, o conjunto das pessoas presentes, o momento, etc. Por exemplo, o
facto de se encontrarem no seu local de trabalho obriga o chefe e um
funcionário de uma empresa a um determinado tipo de comunicação formal, com
objectivos e regras especíificos, que muda quando, ao fim do dia, ambos se
encontram na reunião de encarregados de educação da turma dos seus filhos.
Nesta segunda situação, falarão de outros temas, assumirão papeis difeentes e
desaparecerão as relações hierárquicas que existiam entre eles.
Tal
como podemos ver cada um destes como fatores da boa comunicação, também podemos
encontrar fatores de ruído associados a cada um. Por ruído entendemos qualquer
obstáculo à comunicação, quer se trate de impedimentos, quer se trate de
distorções. Assim, uma barreira física é um obstáculo, mas uma barreira
linguística ou uma discordância nos motivos também o são.
Alguns
importantes erros de comunicação ocorrem na codificação e descodificação da
mensagem. Esses erros podem dever-se à falta de conhecimento por parte de
qualquer uma das partes envolvidas (orador ou público), mas também podem ser
potenciadas por uma má transmissão do sinal (por exemplo, o ruído numa sala
onde se profere um discurso), por expectativas divergentes ou por o orador e o
público se regerem por diferentes códigos de conduta, de linguagem ou de
contextualização.
Tarefas:
1. Explique
a relação entre a retórica dos sofistas e as suas tese acerca da verdade e do
conhecimento.
2. Os
sofistas eram relativistas ou subjectivistas? Justifique.
3. Platão
repudiou a retórica sofista. Explique por quê.
4. Aristóteles
reaproveitou a retórica sofista. Explique por quê.
5. Sugira
regras para a utilização da retórica na política e na ciência.
6. Identifique
uma outra área de trabalho em que a retórica deva estar sujeita a regras
deontológicas.
7. A
argumentação é uma parte da retórica. Identifique objectivos possíveis da
argumentação.
Bibliografia:
Aristóteles,
Retórica:
Gibbons,
Barry, Comunicar com êxito, Porto
Editora, 2007
Henriques,
Artur Franco, Comunicar com audiências…,
Ed. Presença, 2004
Lakatos,
Eva M. e Marconi, Mª de Andrade, Sociologia
geral, S. Paulo, Atlas, 1999
Pease,
Alan e Pease, Bárbara, Linguagem corporal,
Lisboa, Bizâncio, 2009
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