terça-feira, 6 de novembro de 2012

Eis um pequeno excerto de uma comovente cena da Ilíada. Não se sabe ao certo se existiu algum Homero, mas existiu um poeta que, há três mil anos, em poucas palavras soube colocar múltiplas reflexões sobre a vida e a morte, a liberdade e a escravidão, a a glória, o dever, as coisas mais importantes da vida, a excelência e várias formas de amor. É a última vez que Heitor está com a mulher e o seu pequeno filho. O narrador sabe-o, mas os personagens não. No entanto, Heitor assume que este momento, em especial, pode bem ser o seu último momento, e assume toda a responsabilidade de alguém que, podendo morrer, quer morrer bem e deixar na terra uma memória digna.


«...A ela respondeu o alto Heitor do elmo faiscante:
"Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me
envergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos,
se tal como um cobarde me mantivesse longe da guerra.
Nem meu coração tal consentia, pois aprendi a ser sempre
corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos,
esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.
Pois isto eu bem sei no espírito e no coração:
virá um dia em que será destruída a sacra Ílion,
assim como Príamo e o povo de Príamo da lança de freixo.
Mas não é tanto o sofrimento futuro dos troianos que me importa,
nem da própria Hécuba,nem do rei Príamo,
nem dos meus irmãos, que muitos e valentes tombarão
na poeira devido à violência de homens inimigos --
muito mais me importa o teu sofrimento, quando em lágrimas
fores levada por um dos Aqueus vestidos de bronze,
privada da liberdade que vives no dia a dia...
(...)
E alguém falará assim ao ver as tuas lágrimas:
'Esta é a mulher de Heitor, que dos Troianos domadores de cavalos
era o melhor guerreiro, quando se combatia em torno de Ílion.'
Assim falará alguém. E a ti sobrevirá outra vez uma dor renovada,
pela falta que te fará um marido como eu para afastar a escravatura.
Mas que a terra amontoada em cima do meu cadáver me esconda,
antes que oiça os teus gritos quando te arrastarem para o cativeiro."

Assim falando o glorioso Heitor foi para abraçar o seu filho,

mas o menino voltou para o regaço da ama de bela cintura
gritando em voz alta, assarapantado pelo aspecto de seu pai amado
e assustado por causa do bronze e da crista de crinas de cavalo,
que se agitava de modo medonho da parte de cima do elmo.
Então se riram o pai amado e a excelsa mãe:
e logo da cabeça tirou o elmo o glorioso Heitor,
e depo-lo, todo ele coruscante, no chão da casa.
De seguida beijou e abraçou o seu filho amado...»

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