O livro dos homens sem luz
João Tordo
Edições D. quixote 2010, 10ª ed.
No
vasto mundo da literatura há espaço para muitos estilos. Alguns obrigam-nos a
ser corredores de fundo, atletas de alta competição da língua, e para eles vai
o nosso louvor, porque perpetuam o vocabulário que sacrificamos nos dias
comezinhos da nossa vida quotidiana. Outros, com a sua simplicidade, como muita
da literatura juvenil, também merecem o nosso louvor, porque são eles que nos abrem
as portas do palácio em que lemos por prazer e mergulhamos em excitantes
aventuras.
João
Tordo, por sua vez, pertence a uma outra classe: cativa-nos com um estilo
simples e enxuto, que não nos obriga a reler várias vezes a mesma frase, para
nos levar, antes que nos apercebamos, daquilo que na nossa vida dá que pensar. O
seu estilo recorda-nos Lev Tolstoi, George Orwell, Paul Auster, que procuraram
usar a transparência máxima das palavras para, através delas, nos mostrar tanto
as interrogações como os lampejos de beleza que, quando abrimos os olhos do
pensamento, encontramos na nossa própria vida.
Excerto da obra (páginas
142-143)
Eram três mulheres e dois
homens, e todos usavam roupas leves e coloridas, como se a sala pertencesse a
uma outra estação do ano. Os dois homens eram quase idênticos, de cabelos lisos
que reflectiam a luz como espelhos negros, lábios carnudos que se abriam em
sorrisos inocentes e vozes suaves e efeminadas. Elas sentavam-se do lado oposto
da mesa e tinham peles tingidas e rostos redondos e meigos. Eu e Victor ficámos
na esquina da mesa, um tanto afastados, e escutámos durante algum tempo uma
conversa numa língua estranha que nenhum de nós soube identificar.
«Não te assustes, isto é
mesmo assim», disse Victor baixinho. «A minha amiga Zehra explicou-me que eles
estão a ser iniciados.»
«Iniciados?»
«Olha para eles»,
segredou-me ao ouvido. «São puros. Ainda não foram tocados. Acabaram de chegar
a Londres. É a primeira noite que passam na companhia de mulheres.»
«É um ritual de
acasalamento?»
«Não, do acasalamento há-de
tratar a família. O que se passa a qui não pode sair desta sala. Se os pais
deles soubessem, nunca mais os deixavam entrar em casa. O que estão a fazer
é proibido.»
«Queres dizer que é ilegal?»
O cotovelo de Victor
pressionou-me as costelas.
«Não digas isso. Não é
ilegal, é apenas contra a tradição. Vê a coisa desta maneira: existem deuses em
jogo, e também existem demónios. Puxam para lados diferentes. Para o resto da
vida, esta gente vai acreditar na santidade do matrimónio e na pureza espiritual.
Esta noite é uma passagem para um lugar que eles desconhecem e ao qual não
poderão regressar.»
«O que é aquela coisa no
meio?»
«Aquilo», disse Victor,
arregalando os olhos, «é a porta para o além» (…)
Nota biográfica (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Tordo)
"Nasceu em Lisboa a 28 de Agosto de 1975,[1]
filho do cantor Fernando Tordo. Formou-se em Filosofia e estudou Jornalismo e Escrita Criativa em Londres e Nova Iorque.
Trabalha como guionista, depois de ter passado pelo jornalismo, tendo
publicado, entre outros, n' O Independente, Sábado, Jornal de
Letras, ELLE e a revista Egoísta. Escreveu, em parceria, o
guião para a longa metragem Amália, a Voz do Povo (2008). Foi vencedor do
prémio Jovens Criadores em 2001. Publicou cinco romances, O Livro dos
Homens Sem Luz (2004), Hotel Memória (2007), As Três Vidas (2009), O Bom
Inverno (2010)
e Anatomia dos Mártires (2011). Venceu o Prémio José Saramago com o romance As Três Vidas. Foi finalista dos prémios Portugal Telecom, Fernando
Namora, Melhor Livro de Ficção Narrativa da SPA e do Prémio Literário Europeu." Foi recentemente publicado o seu novo romance, O Ano
Sabático.
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